Transição energética requer liderança mais política do que técnica

08/02/23 | São Paulo

Reportagem publicada pelo Canal Energia

Ter acesso à energia e a serviços energéticos de boa qualidade é fundamental para que as pessoas realizem seu próprio potencial como seres humanos

Já não deve ser mais surpresa para ninguém que o mundo caminha em plena velocidade em direção a uma nova realidade nos mercados de energia. Já em 2017, o Fórum Econômico Mundial, em parceria com a consultoria estratégica Bain & Company, introduzia o conceito da transformação dos mercados de energia por meio da eletrificação, descentralização e digitalização. Mais tarde, o conceito de transição energética foi evoluindo para os três D’s da energia (descarbonização, descentralização e digitalização).

Tampouco deve ser novidade que o Brasil possui todas as características para liderar a transição energética globalmente, dados a já destacada matriz energética renovável e o grande potencial para seguir no processo de expansão da geração de energia por meio de fontes renováveis. Por exemplo, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), apenas em 2022 foram instalados 7,1 GW de potência em sistemas de geração distribuída (GD) de fonte solar fotovoltaica, que é a quintessência da transição energética, já que são sistemas descarbonizados, descentralizados e digitais.

Também há o grande potencial do hidrogênio verde (H2V), que pode representar de 12% a 22% de toda demanda de energia no mundo, de acordo com agência internacionais de energias renováveis (IEA e IRENA). E o Brasil já tem condições de produzir o H2V mais barato do planeta, segundo a Bloomberg, devido a alta competitividade da energia solar e eólica no País.

Guilherme Susteras, da ABSOLAR


O que talvez possa surpreender neste novo momento no País é a diretriz de que a liderança desse processo de transição energética requer uma visão mais política do que técnica. Isso porque, como aponta o professor Celio Bermann, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP), a transição energética deve ser entendida muito mais como um fenômeno social, que transcende os aspectos técnicos de geração e distribuição de energia.

A energia não é apenas uma questão técnica ou um bem comercializado. Ela tem vida própria, no sentido de que é produzida e utilizada para transformar a qualidade de vida dos cidadãos. Ter acesso à energia e a serviços energéticos de boa qualidade é fundamental para que as pessoas realizem seu próprio potencial como seres humanos. Esta dimensão social é o que se define como a “vida social da energia”. Assim, um dos aspectos mais evidentes do processo de transição energética aqui no Brasil se dá por meio do crescimento acelerado da geração distribuída. Neste contexto, segundo o professor Bermann e seu colega Andrea Lampis do IEE-USP, temos de nos atentar a dois processos em andamento: por um lado, um processo econômico, relacionado com a transformação de um nicho de mercado específico, e, por outro, uma transformação sociológica mais ampla, por meio da qual pessoas e consumidores se tornam unidades de decisão na produção e distribuição de energia.

Nesse sentido, embora possa parecer apenas mais uma inovação técnica, a geração distribuída representa uma transformação politicamente sensível, na medida em que envolve vários fatores-chave de mudança no equilíbrio de poder: “o nascimento do prosumidor” e “o desaparecimento do planejamento racional”. O surgimento do “prosumidor”, o consumidor que produz sua própria energia elétrica, não é apenas uma questão técnica, uma novidade que pode aliviar o custo da eletricidade para o País. A apropriação da geração distribuída pelos cidadãos é uma questão verdadeiramente política, porque essas pessoas alteram o equilíbrio de poder e da distribuição de lucros no setor. Assim, esses consumidores podem representar uma mudança de paradigma para a configuração tradicional da governança da política energética nacional.

Ronaldo Koloszuk, da ABSOLAR

Com relação ao desaparecimento do planejamento racional, vale lembrar que o atual modelo de planejamento setorial, representado pela atuação conjunta do Ministério de Minas e Energia (MME), da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e da ANEEL, atua no sentido de estabelecer um custo de energia aos consumidores que seja socialmente aceitável e suficiente para remunerar os investimentos de toda a cadeia de valor. No novo cenário, representado por uma configuração mais aberta, emerge uma questão de tentativa de regulação, com vistas ao controle e à disciplina econômica do comportamento do novo ator, os prosumidores.

O desafio para a tecnocracia tradicional e altamente qualificada do trio MME, EPE e ANEEL passa a ser como induzir os prosumidores de volta a uma lógica plena de oferta e demanda centrada no mercado orientado por preços. Entretanto, como a ação dos novos consumidores de energia engloba outros aspectos além daqueles meramente econômicos, pode surgir uma sensação de impotência das equipes técnicas e, consequentemente, uma tentação de se impor modelos regulatórios altamente restritivos para tentar “domar” e “disciplinar” um mercado que se desenvolve com vida própria.

O que se nota é que as principais narrativas institucionais sobre a política de geração distribuída no Brasil até agora destacaram a prevalência dos aspectos econômicos e técnicos da energia sobre suas dimensões sociais. Isso é um reflexo da visão tradicional das equipes técnicas de entes governamentais, que têm como paradigma o modelo tradicional em que o Estado aponta prioridades, o mercado aloca recursos e os consumidores utilizam os serviços de acordo com sua capacidade de pagamento.

Portanto, o papel social da geração distribuída, no contexto da transição energética, requer a liderança de profissionais com vivência em ambientes políticos, alinhado com o perfil do novo ministro Alexandre Silveira. Assim, o presidente Lula da Silva acerta ao destacá-lo para a importante missão de orquestrar os competentes quadros técnicos do setor na direção da transição energética, trazendo uma necessária visão holística sobre o futuro da energia, promovendo a participação dos cidadãos na geração de sua própria energia e remediando eventuais tendências tecnocratas de regulações técnicas e econômicas que possam limitar o crescimento da geração distribuída no Brasil.

Guilherme Susteras é conselheiro e coordenador do grupo de trabalho de geração distribuída da ABSOLAR. Ronaldo Koloszuk é presidente do Conselho de Administração da ABSOLAR