21/11/19 | São Paulo
Foram raras as vezes em que uma proposta no setor elétrico causou tanta mobilização do País, como a observada nas últimas semanas no debate sobre mudanças regulatórias da geração distribuída. Desde que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) publicou sua proposta preliminar, que sugere uma cobrança de até 60% sobre a energia elétrica injetada na rede pela geração distribuída, a sociedade não se furtou em assumir uma posição clara e firme sobre a questão.
Em praticamente todas as regiões do País, consumidores, personalidades, lideranças políticas, especialistas, empresários e jornalistas têm se mobilizado em defesa da liberdade do cidadão de gerar e consumir a própria eletricidade renovável em residências, comércios, indústrias, propriedades rurais e prédios públicos. Talvez, apenas o “apagão”, vivenciado pela sociedade em 2001, tenha causado uma sensibilidade e provocado um engajamento tão marcante da sociedade, como o que se observa neste momento.
A explicação a esta forte movimentação, acompanhada de amplo descontentamento da sociedade, está no visível desequilíbrio da proposta de mudança regulatória apresentada pela Aneel no dia 15 de outubro de 2019. Em especial, pelo fato dela desconsiderar importantes benefícios da geração distribuída solar fotovoltaica em prol da sociedade brasileira. Por meio de uma mudança profunda e bastante negativa da metodologia utilizada para avaliar o valor que a geração distribuída agrega à sociedade, o regulador passou a considerar que a modalidade traz poucos benefícios à sociedade, mudando o foco de sua avaliação para os custos.
Trata-se de uma análise incompleta, já que a geração distribuída solar fotovoltaica agrega amplos benefícios ao País. Os ganhos vão desde aqueles específicos ao setor elétrico e aos consumidores, como a postergação de investimentos em novas usinas de geração, linhas de transmissão e infraestrutura de distribuição, a redução de perdas elétricas ao sistema, o alívio na operação das redes pelo efeito vizinhança, a diversificação da matriz elétrica e o aumento da segurança de suprimento, entre outros. Adicionalmente, há também os relevantes ganhos econômicos e sociais, com a geração de emprego e renda, o aumento de competitividade do setor produtivo, o alívio no orçamento familiar e de governos e o aumento da arrecadação pública. Há também os conhecidos ganhos ambientais, como a redução de emissões de gases de efeito estufa, redução de emissão de poluentes prejudiciais à saúde, alívio sobre os recursos hídricos cada vez mais escassos, redução da necessidade de terras para a instalação de usinas de geração de energia elétrica, já que telhados, fachadas, estacionamentos e outras áreas já construídas são aproveitadas para gerar eletricidade a partir do sol. Há ainda diversos outros benefícios estratégicos que, somados, superam, em muito, quaisquer eventuais custos decorrentes da geração distribuída.
Embora este seja um momento oportuno para debater as regras da geração distribuída, o processo de mudança regulatória, prevista para entrar em vigor já em 2020, começou muito antes do tempo. Antes mesmo do próprio mercado se desenvolver e alcançar a maturidade de um segmento econômico consolidado no País. Os números evidenciam com clareza esta situação: há atualmente apenas 170 mil usuários de geração distribuída solar fotovoltaica, num universo de mais de 84,4 milhões de consumidores cativos atendidos pelas distribuidoras de energia elétrica, ou seja, apenas 0,2% do total. São brasileiros e brasileiras que acreditaram no atual modelo regulatório e que, de certa forma, estão ameaçados por uma eventual mudança severa e desequilibrada na regulação.
O recomendável é que mudanças às regras sejam planejadas para ocorrerem apenas quando atingirmos 5% do atendimento da demanda com a geração distribuída, como nos ensinam as boas práticas de mercados internacionais de sucesso no setor. Muitos destes mercados, por sinal, já ultrapassaram as marcas históricas de 1 milhão ou até mesmo de 2 milhões de sistemas operacionais em seus territórios. Ainda estamos muito longe disso.
O Brasil possui menos de 136 mil sistemas de geração distribuída solar distribuída, frutos da livre iniciativa e do empreendedorismo de consumidores, empresários e investidores que acreditaram no potencial transformador desta tecnologia, considerada uma das mais promissoras do setor elétrico mundial. Outro destaque importante: o mercado é descentralizado, com pelo menos um sistema presente em 70% dos municípios brasileiros. As empresas também estão por todo o Brasil: são mais de 12 mil pequenos negócios, espalhados por todas as regiões do território brasileiro, beneficiando o País de Norte a Sul. Estas empresas agregaram, de 2012 até 2018, dezenas de milhares de postos de trabalho ao mercado, mesmo em anos de crise econômica. Só em 2019, serão mais 30 mil novos empregos de qualidade gerados pelo segmento.
Espera-se, portanto, que a agência reguladora cumpra o seu dever legal de promover decisões de equilíbrio ao setor elétrico. Isso inclui a geração distribuída a partir de fontes renováveis, em forte sintonia com os interesses da sociedade brasileira. É preciso evitar retrocessos econômicos, sociais e ambientais, sob pena de fechamento de empresas, perda de credibilidade do mercado e fuga de novos investimentos e empregos. Para tanto, faz-se necessário ajustar as premissas e incorporar os benefícios deixados de fora da análise da Aneel, imprescindíveis que são para o futuro do nosso País.
Rodrigo Sauaia é CEO da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR); Ronaldo Koloszuk é presidente do Conselho de Administração da ABSOLAR.