ICMS sobre geração da própria energia: Ceará é o 1º do Nordeste a mudar entendimento

30/03/21 | São Paulo

Reportagem publicada em O Povo

Setor afirma que investidor deve rever aplicações no Estado após interpretação do Fisco sobre cobrança pelo uso da rede de transmissão de energia

O aumento de aproximadamente 15% na conta de luz de pouco menos de 15 mil unidades que produzem a própria energia no Ceará deve gerar um impacto bem maior para o setor do que a arrecadação visada pelo fisco estadual, segundo projetam especialistas. O Estado foi o primeiro do Nordeste a mudar o entendimento sobre a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd), fazendo com que estes consumidores pagassem pelo uso da infraestrutura por qual passa a energia gerada por eles, a partir do Imposto Sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS).

A mudança aconteceu em março, quando os primeiros usuários receberam a fatura com cerca de R$ 300 a mais. O valor motivou protestos nas redes sociais tanto pelos consumidores que possuem o equipamento de geração em casa quanto pelas empresas que atuam projetando e instalando as centrais.

“Realmente é complicado. É o primeiro estado do Nordeste a vir esta cobrança, foi pioneiro nesse lado negativo. E é importante destacar: o consumidor, que no setor chamamos de prosumidor – o consumidor que produz (energia) -, não deve ser onerado pelo ICMS porque não há transferência de titularidade, quer seja pela parcela de energia gerada, quer seja pelo uso do fio, do sistema de distribuição”, defende Bernardo Santana, sócio da BBMA Advogados e especialista no setor.

Por nota, a Secretaria da Fazenda se manifestou publicamente afirmando que “o Ceará não mudou ICMS para energias renováveis” e justificou a cobrança ao dizer que o Estado “segue alinhado ao convênio nacional vigente desde 2015 (Confaz ICMS 16/15), que disciplina as operações internas relativas à circulação de energia elétrica, não tendo feito qualquer alteração nas regras atuais”.

“De fato, não foi criado nenhuma regra nova”, concorda Santana. No entanto, ele afirma que a mudança de entendimento após cinco anos sem cobrar ICMS pelo Tusd “pode prejudicar o setor de geração distribuída de uma forma absurda”. O motivo está no tempo de retorno do investimento, o chamado payback. Novos consumidores retornaram com reclamações para as empresas porque previam retorno no valor pago na geração própria de energia em cerca de 4 anos, mas com a cobrança do ICMS o prazo saltou para 6 anos.

Em entrevista ao O POVO Online ontem, 29, a secretária Fernanda Pacobahyba (Fazenda) revelou que a Enel Distribuição Ceará será alvo de uma ação fiscal para reaver os valores perdidos pelo fisco nos últimos anos. “O que nos foi informado é que a Enel finalmente implementou uma atualização no seu sistema de cobrança que permitiu a separação entre as taxas frente ao produto (energia gerada), que são isentas e a cobrança pela tarifa do uso de distribuição (Tusd) que nunca foi isenta”, informou.

Procurada, a Enel afirmou “que está cumprindo a legislação tributária vigente no Estado do Ceará e, a partir do mês de março de 2021, passou a informar na fatura de energia aos clientes de Geração Distribuída (GD) a incidência do ICMS sobre a TUSD (Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição)”. “A companhia informa que a isenção do ICMS é aplicada somente sobre a TE (Tarifa Energia), até o limite da energia injetada pelos sistemas de GD dos clientes, conforme determina a legislação vigente. A companhia informa que os clientes foram comunicados com antecedência sobre a cobrança. Sobre o valor retroativo, a empresa informa que está analisando o tema”, disse em nota.

Para Bárbara Rubim, vice-presidente de Geração Distribuída (GD) da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR), a questão poderia ter sido melhor resolvida com um comunicado mais claro e direto da Sefaz sobre a questão, falando em prazos e percentuais. No entanto, ela observa que a cobrança de ICMS sobre o Tusd deve causar impacto da conduta dos investidores.

“Sem dúvida alguma será um fator que a ser ponderado pelos investidores que estiverem pensando em investir em geração distribuída na região Nordeste. É muito importante que o Estado que se diga pró-energias renováveis seja capaz de desenvolver e manter políticas que de fato incentivem o crescimento das renováveis, mas, mais do que isso, a democratização do acesso, que é exatamente o que a geração distribuída é capaz de fazer”, alertou.

A Vice-Presidente de GD da ABSOLAR ressaltou que a decisão da Sefaz “pode deixar alguns alguns investidores receosos de realizar o seu investimento no estado do Ceará, sobretudo se eles tiverem a opção de ir para algum estado próximo, que eventualmente, tenha condições de tarifa e radiação semelhantes”.

Mercado deve assimilar custo com o tempo

O mercado hoje funciona com alguns equipamentos com produção local, no Brasil, mas os módulos fotovoltaicos vem de fora. Então, tudo depende do mercado internacional. Do ano passado para cá, observamos um aumento de 40% nos custos, principalmente, por causa de pandemia, lockdown, e tivemos uma alta nos preços. Isso já interferiu na dinâmica do nosso negócio porque tem a ver com o tempo de retorno. Então, fazendo esse balanço, o tempo de retorno já vinha caindo, apesar de 2020 para cá, teve esse acréscimo alheios ao mercado.

Com a mudança da cobrança do Tusd, a recepção pelos clientes foi totalmente negativa, apesar de a Enel ter dito que avisou com antecedência, para os clientes, foi algo bastante inesperado. Claro que a Enel não está fazendo nada de ilegal. A cobrança é devida. Mas não foi bem-recebida. E o clima é de insatisfação pelos clientes, pois eles fecharam o negócio de todo um projeto, um investimento baseado num tempo de retorno que não será mais o mesmo. Apesar de quê ainda é interessante economicamente, ainda é viável fazer um investimento em energia solar, os clientes, principalmente os mais recentes, fecharam os contratos com um cenário e o cenário mudou de uma hora para outra.

A dúvida da maioria dos clientes, que nós notamos, é que a cobrança acontece justamente quando o Congresso debate o projeto de lei do marco legal da geração distribuída, e alguns confundiram que seria isso. Mas não é. É a cobrança de ICMS sobre a Tusd, que já é aplicado em vários outros estados, e que a Enel passou a cobrar aqui. Não cobrava antes porque o sistema deles não permitia dessecar a tarifa da maneira como está sendo feita agora.

Vejo que vai ser prejudicial inicialmente, mas deve ser rapidamente superado. Acho que vai ter um recuo de imediato no interesse e nos novos contratos de geração distribuída, mas acredito que será momentânea, enquanto os clientes se inteiram mais sobre o assunto. Mesmo que você coloque o tempo de retorno para 6 anos não é ruim. Há 2 anos ou 3 anos, este era o tempo de retorno, quando não se tinha tanto investimento nesta geração.

Mas quando acabar esse lockdown e a pandemia, principalmente, quando vai ter uma demanda reprimida, a curto e médio prazo, inclusive, vejo isso sendo superado. Até porque em outros estados isso é cobrado. Em Minas Gerais, a tarifa já é assim e é o estado que mais instala energia solar no País. Então, acredito que é só uma questão de absorver este impacto.

Sobre a possibilidade de a cobrança sendo retroativa aos clientes pela Enel seria uma questão mais jurídica.

Entenda a questão

Até março deste ano, não havia cobrança de ICMS sobre a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd) no Ceará para os usuários que geravam a própria energia. O Tusd corresponde à infraestrutura pela qual é distribuída a energia gerada.

Havia apenas uma tarifa única, que compreendia o Tusd e a Tarifa de Energia (TE). De acordo com a Sefaz, a Enel atualizou o sistema de cobrança e pôde identificar o Tusd de cada usuário. Assim, a Sefaz fez uso do convênio 15/16 do Confaz, que permite a tributação da tarifa.

Com isso, os consumidores que produzem a própria energia tiveram um aumento na conta de energia no último mês. A contestação deles e das empresas que instalam os equipamentos é porque, apesar do entendimento do Confaz, não havia incidência de ICMS há cinco anos.

O impacto recai sobre os consumidores que geram a própria energia. Atualmente, segundo dados da ABSOLAR, existem 14.022 cearenses que contam com a geração de energia em casa. O número representa ainda uma potência instalada de 170,9 megawatts e apresenta 3,5% do parque de geração distribuída do País.

Ação

A Sefaz revelou que a Enel Distribuição Ceará será alvo de uma ação fiscal para reaver os valores perdidos pelo fisco nos últimos anos sem a cobrança sobre a Tusd.