Quem criou o milagre da energia renovável?

17/08/21 | São Paulo

Reportagem publicada na Folha de S.Paulo

Apoio do governo criou um milagre de custos que poderia não ter acontecido de outro modo

Por mais terríveis que sejam muitas coisas no mundo, a mudança do clima é única, por representar uma ameaça à existência da civilização. E é horripilante que tantas figuras políticas se oponham frontalmente a qualquer ação séria para enfrentar essa ameaça.

A despeito disso, continua a existir a chance de que nos saiamos bem o suficiente para evitar uma catástrofe –não porque tenhamos nos tornado mais sábios, mas sim porque tivemos sorte. Costumávamos acreditar que obter grandes reduções nas emissões de gases causadores do efeito estufa seria difícil e dispendioso, ainda que isso jamais tenha sido tão dispendioso quanto os inimigos da causa ambiental afirmavam. Nos últimos 12 anos ou pouco mais, no entanto, passamos por um milagre tecnológico. Como Max Roser bem documenta em um artigo, os custos da energia solar e da energia eólica, no passado desdenhadas como tolas fantasias hippies, caíram a tal ponto que bastam incentivos modestos para conduzir a uma redução rápida no uso dos combustíveis fósseis.

Mas será que isso aconteceu por sorte? Esse milagre –dois milagres, na verdade, porque gerar eletricidade do sol e do vento envolve tecnologias completamente diferentes– aconteceu por acaso exatamente no momento em que necessitávamos? Ou ele foi consequência de boas decisões de política pública?

A resposta é que existem bons argumentos em favor de afirmar que boas políticas –os investimentos do governo Obama na energia verde e subsídios europeus, especialmente para o desenvolvimento de instalações offshore de energia eólica– desempenharam papel central.

Qual é a justificativa para essa conclusão? Comecemos pelo fato de que nem a energia solar e nem a energia eólica era uma tecnologia fundamentalmente nova. Moinhos de vento estavam em uso pelo menos desde o século 11. A energia solar fotovoltaica foi desenvolvida na década de 1950. E, até onde sei, não houve qualquer grande avanço científico por trás do recente declínio dramático de custos dessas duas formas de energia.

O que estamos vendo, em lugar disso, parece ser uma situação na qual o uso crescente de energia renovável é que impulsiona as reduções de custos. No caso da energia solar e eólica, vimos uma série de melhoras graduais à medida que as companhias de energia ganham experiência, grandes reduções nos preços de componentes à medida que coisas como as lâminas das turbinas começam a ser produzidas em massa, e assim por diante. A energia renovável, como aponta Roser, parece estar sujeita a curvas de aprendizado, sob as quais os custos caem em proporção ao avanço cumulativo da produção.

E essa é a questão: quando um setor tem uma curva de aprendizado desafiadora, o apoio governamental pode ter imensos efeitos positivos. Basta subsidiar um setor por alguns anos para que os custos comecem a cair, com a experiência, e a situação enfim chegará a um ponto no qual o crescimento se torna autossustentável, e subsídios deixam de ser necessários.

Isso pode ter acontecido, ou estar à ponto de acontecer, com relação à energia renovável.

O American Recovery and Reinvestment Act de 2009 –o pacote de estímulo econômico adotado quando Barack Obama assumiu a presidência– tinha por objetivo principal combater o colapso da demanda que se seguiu à crise financeira de 2008. E ajudou, mas mesmo assim adquiriu uma reputação negativa porque não tinha força suficiente para produzir uma recuperação rápida. (E não, não estou falando em retrospecto. Foi uma questão sobre a qual me esgoelei na época.) Mas também incluía verbas significativas para a energia verde: incentivos fiscais, subsídios, empréstimos do governo e garantias a empréstimos.

Alguns dos projetos em que o governo apostou deram errado, e os republicanos tiraram vantagem política das perdas. Mas os financistas do setor de capital para empreendimentos antecipam que alguns dos negócios em que apostam fracassem; se isso nunca acontece, eles não estão assumindo riscos suficientes. De forma semelhante, um programa do governo dirigido a promover o avanço da tecnologia com certeza terminará resultando em alguns fracassos; se isso não acontece, o projeto não estará estendendo as fronteiras.

E, em retrospecto, a impressão é de que as iniciativas de Obama de fato estenderam as fronteiras, especialmente no caso da energia solar, que, de uma tecnologia de alto custo e adoção limitada, se converteu em uma tecnologia que ocasionalmente é mais barata que as fontes tradicionais de energia.

As políticas de Obama também ajudaram a energia eólica, mas quanto a isso suspeito que boa parte do crédito cabe aos governos europeus, que subsidiaram pesadamente projetos de energia eólica offshore, no começo da década passada.

Em resumo, há bons argumentos em favor de afirmar que o apoio do governo à energia renovável criou um milagre de custos que poderia não ter acontecido de outro modo –e esse milagre de custos talvez seja a chave para que nos salvemos da catástrofe quanto ao clima.

Tradução de Paulo Migliacci

Parque eólico da Neoenergia, localizado em Rio do Fogo, no litoral do Rio Grande do Norte, estado com maior produção de energia eólica no Brasil (Foto: /Alex Régis/Folhapress)

Parque eólico da Neoenergia, localizado em Rio do Fogo, no litoral do Rio Grande do Norte, estado com maior produção de energia eólica no Brasil (Foto: /Alex Régis/Folhapress)

Parque eólico da Neoenergia, localizado em Rio do Fogo, no litoral do Rio Grande do Norte, estado com maior produção de energia eólica no Brasil (Foto: /Alex Régis/Folhapress)

Parque eólico da Neoenergia, localizado em Rio do Fogo, no litoral do Rio Grande do Norte, estado com maior produção de energia eólica no Brasil (Foto: /Alex Régis/Folhapress)

As grandes hidrelétricas, como Furnas (foto), são as responsáveis pela produção de energia elétrica do país (60,26%); entre as usinas que estão em construção, esse o valor diminui: as novas hidrelétricas de grande porte correspondem a 12,68% da energia que será gerada pelas novas construções (Foto: Apu Gomes/Folhapress)

As usina térmicas, como a operada com gás natural em Uruguaiana (foto), entregam 25,86% da energia usada no país. Segundo a expectativa da Aneel, as termelétricas podem gerar 37,18% da energia produzida pelas novas usinas (Foto: /Reuters)

Os parque eólicos (na foto, em Fortaleza) geram 8,21% da energia brasileira. Entre as usinas em construção, as eólicas vão responder por 25,03% da potência (Foto: Jarbas Oliveira/Folhapress)

As termonucleares correspondem a 1,24% da energia gerada no país atualmente. Entre as usinas em construção, 13,64% da potência gerada virá das nucleares. Na foto, usina de Angra 2, no Rio de Janeiro (Foto: Caco Konzen/Folhapress)

Hoje, as usinas solares (como a do Piauí, na foto) respondem por apenas 0,82% da matriz energética. Segundo Aneel, 8,35% da energia que será gerada pelas usinas em construção virá dos campos com painéis fotovoltaica (Foto: Zanone Fraissat/Folhapress)